quarta-feira, julho 19, 2006

Sinal dos Tempos



Da historia do mundo que se tem notícia,-- um tanto por tradição escrita e muito mais por tradição oral—e nisso já se pode arredondar para perto de seis mil anos, sempre e sempre a mulher foi considerada um ser inferior, tratada e maltratada como serva, vendida pelos pais e submetida a todos os serviços domésticos, sem direito a reclamar e a se insurgir, e, se isso acontecia era severamente castigada e até morta, para dar exemplo às outras mulheres de humildade e subserviência.

As poucas que conseguiram sobressair, aprendendo a ler ou demonstrando inteligência em atitudes de rebeldia ou dando palpites acertados, assustavam os homens que, não acostumados a ter de aceitar o fenômeno, se sentiam diminuídos e motivo da chacota dos seus pares, por conviver e sustentar uma mulher que eles não conseguiam “manter em seu lugar”

Essa história é do conhecimento de todos e se perpetuou pelos séculos até há bem pouco tempo. As atitudes de rebeldia foram aumentando e, vagarosamente, elas foram ganhando espaço e mantendo essa conquista, assegurando silenciosamente seu direito a alforria.

Foram seis mil anos de sofrimento os quais, honra seja feita, talvez os homens não sejam tão culpados já que essa tradição lhes foi ensinada desde os primórdios dos tempos e também porque, ora essa, lhes era muito conveniente essa cultura machista que lhes proporcionava todas as regalias.

O século XX foi realmente marcado por incríveis mudanças e uma explosão de progresso tão acelerado que, para os mais antigos, é custoso admitir que tanta coisa aconteceu em tão pequeno espaço de tempo.

Nestes últimos cinqüenta anos o percentual de mulheres que freqüenta escola é enorme, que conclui uma faculdade e mostra brilhantismo numa carreira que, antes, era restrita apenas aos homens já é deveras significativo, e nem é preciso citar os postos que, na atualidade , já exercem com competência , conquistando assim o respeito e até a admiração dos homens.

Muita coisa ruim ainda acontece, basta que se leiam os jornais, mas elas continuam lutando, silenciosamente, conquistando com valentia o seu lugar, não atrás do seu companheiro, mas a seu lado, como sempre deveria ter sido.

Há milhares de histórias que comprovam essas atitudes libertárias, mas todo esse preâmbulo é para lhes contar a história de DOROTÉIA , alguém que, antes da segunda guerra mundial, contribuiu para que as coisas mudassem, sendo olhada com respeito por tantas outras que não tiveram a sua coragem.

DOROTÉIA

Dorotéia era uma moça bonita que não tivera acesso à escola. Mal sabia escrever o nome. Muito cedo casou-se e teve quatro filhos, que ela criava com todo o zelo .Era excelente dona de casa, e grande quituteira. Por ajudar sempre as vizinhas com seus guisados, não tardou a se tornar conhecida no bairro e, nas festas da igreja, sua barraca era das mais concorridas.

Há que se dizer que Dorotéia nunca teve, de parte do marido, a liberdade de usar do dinheiro deles como queria. Tinha sempre de pedir ao marido e explicar direitinho o que iria fazer com o que ele lhe dava, e que era mesquinhamente controlado.

Ela odiava tal situação e já vendia seus quitutes para ter algum seu, com o que comprava mimos para as crianças, alguma roupa e até calçados. Para ela ou os filhos.
Os anos passavam e, aparentemente, era um casal muito feliz, porque ela nada contava.
Um ano, por ocasião das festas da igreja, que já se tornaram tradição na cidade e a afluência já era muito grande, o pároco resolveu aceder ao pedido das senhoras e permitir que se realizasse um grande baile no último dia da festa.

Foi um alvoroço geral! As senhoras, entusiasmadas, combinavam como enfeitariam o salão paroquial e calculavam os gastos com doces e bebidas para o dia aprazado. As costureiras enlouqueceram...não tinham mãos a medir de tanto serviço!

Dorotéia conversou com o marido, que gostava das festas e achou boa a idéia do baile. Ela, então, lhe pediu dinheiro para comprar um tecido bonito, queria também um vestido novo.

A casa quase caiu...
Ele ficou uma fera!
Vestido novo prá que? Os que ela tinha estavam muito bons, ora essa!
Não e não!!!

Dorotéia nada respondeu, mas a revolta dela chegou ao pico.

Ela não vivia a ajudá-lo com seus quitutes? Ela não economizava tudo que podia fazendo até a roupa dos filhos em casa? Ela não cuidava da casa e de tudo sempre com critério e obediência? Será que não merecia um vestido novo para a festa? Era sempre não e não...

O dia da festa se aproximava, as amigas falavam entusiasmadas de seus trajes e ela ficava calada e triste.

Um dia, depois de uma noite insone, levantou-se furiosa. Ela sabia onde o marido guardava o dinheiro (naquele tempo ainda não existiam bancos como hoje), e se apoderou de uma quantia, o suficiente para comprar o tecido e pagar o feitio do traje. Ela hesitara muito, fizera as contas mil vezes, seu coração quase lhe saia pela boca, mas ela resolveu que merecia e fim. Depois, com certeza, seu marido se acalmaria.

E no dia da festa, depois de trabalhar muito na quermesse, Dorotéia foi para casa e se aprimorou na aprontação. Meu Deus! Como estava feliz, olhando-se no espelho, como se achou linda! Até os filhos a rodeavam, admirando-a.

José, o marido, parecia não ter percebido nada, não fez comentário algum e lá se foram para a festa, que foi maravilhosa e foi assunto para meses das senhoras organizadoras.

Dorotéia estava radiante. Tudo dera certo. Só estranhava que o marido nada comentara sobre seu vestido. Passados alguns dias não resistiu e resolveu perguntar-lhe se gostara do vestido novo.

“Que vestido?”

“Ora, o vestido novo que usei na festa! Você gostou?”

“Vestido novo? Como vestido novo? Eu não lhe disse que não precisava de vestido novo? Como você fez isso? Com que dinheiro?

Nessas altura, José já esbravejava...

Dorotéia nunca vira o marido tão enfurecido. Estava realmente assustada...
Ela tentou acalmá-lo falando devagar e pedindo-lhe que esperasse ela contar.
Qual nada. Quando soube que ela pegara o “seu” dinheiro sem autorização, avançou para ela descontrolado.

“Você fez isso? Você fez isso?”

E, sem que Dorotéia entendesse bem o porque de tanta fúria, ele avançou para ela, esbofeteando-a várias vezes. Dorotéia, aturdida, gritava de dor, estupefata diante de tanta violência.

Quando ele parou, ela foi até o espelho do quarto.

Em silêncio via o sangue escorrer de sua boca, manchando sua blusa. José também parecia desnorteado com o que fizera, olhando para a mulher ensangüentada.

Dorotéia olhou para o marido através do espelho e, em silêncio olhava o sangue pingar, manchando sua blusa.

De repente , de costas para ele e pelo espelho, lhe disse pausadamente:

“José , vê todo esse sangue? É seu, José...É seu!!! Você acaba de morrer...Você se matou, José!!! Você se matou!!!”

Desse dia em diante nunca mais lhe dirigiu a palavra. Nunca mais lhe pediu ou perguntou nada.

Foi trabalhar de cantineira num colégio e dali tirou seu sustento e dos filhos.
José andou como uma alma penada pela casa por uns tempos, imaginando que a raiva de Dorotéia passaria e, como ela não passasse, acabou saindo de casa, mas ficando por perto, dizendo que tinha de ficar perto dos filhos, sempre vigiando a mulher....

E Dorotéia ? A quem perguntasse, ela dizia:

“Eu? Sou viúva!!”