sábado, abril 25, 2009

Meu Colega Cosme


Era um menino baixinho e quieto Era negro também, mas ninguém se importava com isso, não me lembro disso fazer diferença, naqueles idos de 1950. No Rio de Janeiro, onde me criei, quase todos éramos mestiços e descendentes de imigrantes, com muita ênfase em descendentes de portugueses, com os sobrenomes Silva, Pereira, Oliveira, Santos muito disseminados. Ele chamava-se Cosme...


Eu sim, me considerava uma discriminada. Meu nome era sempre motivo de comentários dos professores sobre imigração européia e minha ascendência italiana e alemã, com nome e sobrenome de letras complicadas, era sempre motivo de curiosidade, especialmente numa escola pública de subúrbio pobre carioca...


Ele não, nele tudo era simplicidade. Era bom aluno, atencioso e educado com os colegas, sempre se destacava entre os primeiros da classe. Eram uns dez meninos somente, mas ele se destacava também, a meus olhos, por estar sempre com a farda impecável.


Uma coisa que agora me chama a atenção é o porquê da “farda”. Num calor constante como no Rio, os meninos usavam farda de brim cáqui, cheia de bolsos chapados e botões dourados, com cinturão e mangas compridas como dos militares, enquanto nós, meninas, usávamos saia marinho de pregas e blusa de mangas curtas branca, bem mais de acordo com o clima local.


Mas não é disso que me propus a falar.


Sentávamo-nos por livre escolha nas carteiras, misturados naturalmente pelas afinidades e tudo ia muito bem até que, não sei por que motivo, um dos professores resolveu nos separar e colocou os meninos nas carteiras do fundo da sala. Naqueles tempos se obedecia sem rebeldia e os professores eram respeitados e tratados com deferência pelos alunos e suas famílias, bem diferente do que se vê hoje-- comportamento inimaginável para mim, que não acredito ser possível aos mestres serem tratados como o são hoje.


Tínhamos provas orais e escritas em junho e em dezembro. Estudávamos mesmo para passar de ano, e eram tempos de muito trabalho e nervosismo.


Eis que, de repente, fui chamada à sala da Diretora. Eu estava monitora de classe e, com certeza, conhecia bem meus colegas. Estavam alguns professores lá, aparentemente me aguardando, e me senti apreensiva com o que poderia estar chegando. Que estava acontecendo?


A Diretora me perguntou o que eu achava do Cosme. Eu, certamente, olhei para todos com cara de “ponto de interrogação” e, sem entender nada, disse que o achava um bom colega e que sempre fora um bom aluno.Mas o que estava acontecendo com ele? Estava doente?


A Diretora me disse que ele colara na prova final de História que fizéramos na antevéspera.
Que? O Cosme? Colando? Em prova final? Fiquei pasmada e disse que não acreditava. Ainda mais em História! Ele era ótimo em História!


A Diretora me disse que ele já estava sendo vigiado e que dera mostras já, nas provas de Geografia e Ciências do mesmo problema.


Mas não pode ser, disse eu!Ele é ótimo em todas essas matérias!


A Diretora olhou muito séria para mim e me dispensou. No dia seguinte fui chamada à sala da Diretora de novo e, para minha surpresa, lá estavam quase todos os professores, o Cosme e seus pais, humildes e assustados.


Deus do céu! Vão expulsar o Cosme!Como é que foi acontecer isso?


Foi um verdadeiro julgamento. Eu estava como testemunha da classe e do que ocorreria em seguida e também estava muito assustada, com muito dó do meu colega.


A Diretora explicou a todos do que se tratava e, tratando os pais dele com bondade, disse-lhes da gravidade da situação. Pediu então ao professor de História que mostrasse a prova do Cosme e em seguida fizesse as perguntas. Meu colega estava altivo, apesar de assustado e não baixou a cabeça e respondeu, inclinando a cabeça para a frente para melhor ouvir as perguntas, que nunca tinha colado.O professor repetiu a pergunta e ele continuou negando.


Eu tremia de aflição.


O Cosme então, em desespero contido e educadamente, pediu ao professor que lhe fizesse qualquer pergunta da prova. Todos os professores se entreolharam e a Diretora acatou o pedido, dizendo ainda que, se ele acertasse a resposta, seria aprovado.


Era uma luz no final do túnel, mas será que o Cosme agüentaria? Certamente o professor faria a pergunta mais polêmica e de interpretação dúbia para pegá-lo numa armadilha. Eu continuava tremendo... Como ele conseguiria?


O silêncio era total. O momento era decisivo. Da resposta dele dependia não só a aprovação anual do Cosme, mas também a sua honra.


O professor, muito sério, fez a pergunta e, dado a gravidade do momento, a repetiu pausadamente.


Eu, de aflição, suspendi a respiração e acho que todos fizeram o mesmo.


O Cosme, olhando firme para o professor, começou a responder alto e em bom som. E, à medida que ele falava, todos nos entreolhávamos.


Meu Deus! Que é isso?


O professor, pálido, silenciosamente abriu o livro e o colocou à frente da Diretora. O Cosme repetia, palavra por palavra, os dizeres do livro, tal e qual!


E não parava! Continuou recitando o capítulo, com todas as palavras do livro!A surpresa dos professores foi tal que todos se entreolhavam sem entender. O professor de História baixou a cabeça, a Diretora e os pais do Cosme choravam. Eu também.


Ele continuava recitando o capítulo. Eu olhava para a Diretora como a perguntar: Não chega? Até que ela, em seguida, mandou-o parar.


Todos estávamos muito emocionados e mais ainda ficamos quando a Diretora lhe perguntou por que ele sabia o livro de cor.


Ele, muito encabulado, como se estivesse expondo algo muito íntimo e muito feio, disse que quase não ouvia o que o professor dizia e, como se sentava lá atrás, se obrigava a decorar todas as matérias discursivas.


A Diretora, estarrecida, perguntou à mãe dele se era verdade e a senhora, muito nervosa, confirmou, dizendo que o Cosme não queria que ninguém soubesse por que tinha muita vergonha disso.Ele estava surdo!


A tempestade, que se anunciara tão feia se abriu num sol esplendoroso...


Foi uma alegria geral. Corri a abraçar meu colega que chorava agora, terminada a tensão, e o mesmo fizeram todos os professores.


O Cosme foi aprovado com “HONRA AO MÉRITO”...


Onde anda você, meu amigo?

Curitiba, 15 de abril de 2009.

quarta-feira, abril 22, 2009

Ausência


Faz tempo...

Faz tempo que não me permito a felicidade de escrever, de soltar as amarras e deixar minh’alma livre, fugindo da realidade e sumindo no sonho.

Estou como o pássaro engaiolado que não consegue nem cantar e se restringe a ver os dias passarem e passarem, nunca iguais... sempre cheios de sobressaltos e nuvens sombrias ou alegrias esperadas ansiosamente que demoram demais a chegar e, às vezes, quando vêm, o dia já está escurecendo e tudo perdeu a graça... já passou a hora e não mais importa...

Faz tempo...

O meu dia já vai escurecendo e meu tempo vai passando muito depressa. Será que ainda terei chance de me derramar em histórias e me exaurir escrevendo temas em que repasso minha maneira de enxergar as pessoas no tempo e o tempo das pessoas com quem convivi? Às vezes um convívio irreal, fora completamente do estranho mundo em que vivemos, mas vívidas em minhas tramas e temas de um mundo sonhado e fantástico.

Eu prometi, no prefácio de minhas "Folhas-do-outono" que, como as folhas de outono, rolando e se esfacelando ao vento, expostas ao tempo, eu arrancaria de mim os enredos e tramas, histórias e crônicas que talvez pudessem até ser apreciadas por pessoas que procurassem na leitura um passa-tempo, uma identificação ou até um pouco de conhecimento ao se embrenharem por "lugares nunca dantes explorados".

Faz tempo que dei uma pausa e que nada mais escrevi.

As "folhas–do-outono" passaram por um vendaval, por um "tsunami" que arrastou tudo no turbilhão da vida. Estou ainda em estado de choque, desde que perdi minha filha CRISTINA. O desânimo, o desalento diante da impotência humana e da inexorabilidade da morte fizeram as "folhas-do-outono" caírem na correnteza desenfreada da vida e, em torvelinho, despencarem nos bueiros escuros do desencanto.

A tempestade passou, a devastação ficou, mas a vida continua, exigindo e cobrando continuidade e ação.

Então, aqui estou de volta e tentarei manter as "folhas-do-outono" rolando ao vento e se esfacelando e se desmanchando, e se despedaçando... até virarem pó.