Não me lembro mais que época do ano era, só sei que o crepúsculo começava a descer sobre Campo Mourão e eu tinha muita roupa no varal que, provavelmente já estava seca. Eu me preparava para ir para o Colégio Estadual e, ao ver a roupa lá fora, apressei-me a ir recolhê-la, mesmo porque se deixavam as roupas o mínimo de tempo na corda. O sol e o vento se incumbiam de uma secagem rápida, mas a exposição demorada permitia que a permanente poeira vermelha deixasse as roupas “rosadas” e encardidas, e a rua onde morávamos era uma das principais, com intenso movimento de veículos.
Eu retirava apressada as peças e recolhia os grampos quando, de repente, vi um avião, desses pequenos, monomotor, passar alto sobre a casa. Olhei para cima, pouco interessada, pois isso era muito comum naquele tempo. O tráfego de pequenos aviões era intenso já que era o meio mais rápido de se chegar aos centros maiores do estado e muito usado por pessoas que iam atrás de recursos médicos ou pelos fazendeiros da região que tinham pressa em resolver seus problemas e não queriam se expor às brincadeiras do tempo e às incertezas das estradas.
Continuei meu trabalho e vi novamente o avião passar.
Voltava já para casa, carregada de roupas no cesto e, no momento que entrava, ouvi de novo o avião passar no sentido contrário. Parei e olhei o céu.
Campo Mourão está num planalto e, àquela hora, o sol descia na linha do horizonte.
O céu estava ainda muito claro e cheio de sol, mas a terra estava já às escuras.
Estremeci. O avião passava de novo, em sentido contrario. Alguma coisa estava errada... Àquela hora um avião ficar para lá e para cá... Alguma coisa estava errada...
Joguei o cesto de roupas sobre a mesa e saí correndo para o telefone.
Sabia de cor o telefone da estação de rádio da cidade, a Rádio Colméia, e conhecia alguns dos seus funcionários, pois tinha um programa semanal de orientação às mães e gestantes sobre a maneira de tratar recém nascidos, avisando-as de sintomas de doenças, passando-lhes receitas e as incentivando a vir com as crianças para consultas periódicas - eu também era voluntária da Associação de Proteção à Maternidade e à Infância -.
Perguntei à pessoa que me atendeu quem era que estava no microfone e me informaram que era o Sr. Adinor Cordeiro. Pedi que o chamassem com urgência, que eu precisava lhe falar.
Ele me atendeu prontamente. Eu estava à janela e, novamente, o avião passava alto sobre minha casa. Nessas alturas eu já tinha certeza que algo muito sério se passava.
Passei minha preocupação para o Sr. Adinor, que me respondeu assustado:
“Mas não é possível, dona Walkyria, o sol ainda está alto!”
“Olhe bem daí, Sr. Adinor! Aqui em baixo já está escuro! Alguém está em perigo! Corra dar o alerta antes que seja tarde!”
“Eu custo a acreditar, mas vou observar! A senhora fique na escuta.!.. Caso se confirme , é prá já!...”
Eu larguei do telefone, peguei o radinho de pilha e continuei na janela, olhando o céu, o coração aos saltos. Novamente o avião passou...
Minhas crianças, assustadas com a minha aflição, me rodeavam inquietas.
Imediatamente o rádio começou:
“Atenção! Atenção! Há um avião sobre a cidade me parecendo perdido! Dirijam-se ao campo de aviação! Dirijam-se ao campo de aviação!”
Ao mesmo tempo falava com o piloto:
“Atenção piloto do avião! Se pode me ouvir, balance as asas! Se pode me ouvir, balance as asas!”
Arrepiada, assisti o avião responder ao chamado, balançando as asas.
Nessas alturas, o movimento de carros, jipes e caminhões já era intenso na minha rua, dirigindo-se ao aeroporto. Eu rezava, aflita, agarrada ao rádio.
O locutor continuava:
“Você está sobrevoando Campo Mourão! Tenha calma e atenda minhas orientações! O campo de pouso está na direção de sua cauda! Retorne e continue na mesma direção, em cinco minutos estará sobre o campo. O povo já está indo em seu socorro. Tenha calma!”
Os carros passavam zunindo, já de faróis acesos, sob um pó intenso, à frente de minha casa. Eu não conseguia sair da janela e nem me dava conta que já estava em cima do meu horário de ir para meu trabalho.
Minhas crianças e a empregada disputavam a janela comigo, alvoroçadas pelo movimento inusitado.
Atendendo a orientação, assisti o avião fazer a volta e tomar o rumo indicado. Eu, cá de baixo falava com ele:
“Isso, rapaz! Vamos! Continue! Você vai bem! Vamos! Isso! Está quase chegando! Vamos! Vamos!”
Eu já havia assistido outras vezes algo semelhante e inclusive já tinha participado com meu marido e nosso jipe numa dessas aventuras de salvamento.
O aeroporto (campo de aviação) era rústico e sem recursos. Não tinha iluminação e os pousos eram freqüentes, mas apenas durante o dia. Ao entardecer, se acontecesse, os pilotos pediam socorro pelo rádio para nossa emissora e o locutor largava o alerta. O povo todo participava e era uma das coisas mais comoventes de se ver a solidariedade que nos irmanava nessas horas.
Os veículos se postavam nas laterais do campo de aviação, formando duas linhas paralelas e acendiam o farol dos carros. Essa iluminação rudimentar já salvara muitas vidas. Era isso que estavam fazendo nesse momento
Quando vi que ele enveredava pelo rumo certo, me acalmei, dei graças a Deus, fechei a janela e fui terminar de me aprontar rapidamente para ir ao Colégio, onde cheguei esbaforida e atrasada.
Dei minhas aulas e nada comentei com ninguém, voltando para casa no horário costumeiro, já encontrando as crianças dormindo.
No dia seguinte o telefone não parava de tocar, todos queriam saber como eu percebera o acidente iminente e me cumprimentavam pela rapidez com que eu providenciara a ação.
Passei dias às voltas com o episódio, onde quer que fosse era cumprimentada. No colégio, os alunos e professores me faziam repetir o caso.
Fiquei sabendo depois que o piloto era muito conhecido na região e que estava realmente sem rádio. Pousara com sucesso e, ao sair do avião estava chorando de emoção, abraçando todos os que correram em seu socorro e que depois, fizera questão de ir à Radio Colméia, onde participou de uma entrevista com o Sr. Adinor Cordeiro que o inteirou de como tudo tinha acontecido. Foi então que meu nome foi citado e o piloto, muito comovido, me fez um agradecimento.
Como disse antes, os comentários duraram dias e eu estava sempre a ter de repetir a história, a que eu acrescentava que me espantava tanta festa, já que não fizera mais do que qualquer um faria numa hora dessas. O único mérito e diferença é que, e eu me sentia gratificada por isto, eu estava no lugar certo, na hora certa, com certeza não por acaso...