sábado, maio 23, 2009
Cidadã Honorária de Campo Mourão
Tenho certeza de que todas as pessoas que aqui se encontram têm lembranças fortes, uns de um passado longínquo, outros de um passado mais recente.
Hoje eu estou aqui para firmar uma lembrança alegre- uma marca para mim, para meus filhos, meus netos e esse grupo de minha família e de amigos que me acompanha- penso, especialmente, em meus netos, que estão aqui todos, presenciando esta solenidade.
Eles poderão no futuro, quando eu já não estiver mais aqui, contar que assistiram uma cidade conceder o título de CIDADÃ HONORÁRIA a uma simples mulher que, para receber esta honraria apenas estava no lugar certo e na hora certa, contribuindo com sua sensibilidade a uma “cidade-menina” que carecia de tudo e despontava pujante no estado do Paraná.
Uma cidade tão especial, tão surpreendente, tão à frente e acima dos padrões de avaliação conhecidos, que não lhe cobrou títulos nem vistosas ações.Apenas pesou, talvez, sua modesta atuação na assistência social, quando aqui tudo era preciso e tínhamos tanto a fazer pela cidade.
Fico a pensar no que os levou a essa homenagem...
Terá sido pela autoria da singela música do HINO DE CAMPO MOURÃO?
Creio que não... só isso não seria suficiente para tão expressiva homenagem.
Muitos aqui talvez não saibam mas, além de lecionar no Colégio Estadual e na Escola Normal, participei com muito empenho num projeto de assistência à Maternidade e à Infância, quando tudo aqui estava começando e tudo era muito difícil de conseguir e eu acho que, muito mais que pela minha atuação como professora e pela composição do HINO DE CAMPO MOURÃO, o responsável maior por eu estar aqui é o SR. JOÃO...
O “SEU” JOÃO
Fazia poucos meses que eu morava em Campo Mourão.
Tinha 23 anos e um filhinho de 5 meses.Era vizinha do Bispo de Campo Mourão que, um dia, mandou-me um convite para um lanche em sua casa. Surpresa, pois quase ninguém conhecia, compareci e lá encontrei várias senhoras que, mais tarde, vim a saber que faziam parte expressiva da sociedade local. Eram as esposas de médicos, empresários, juiz, prefeito, promotor, comerciantes e representantes de todos os setores.
Antes do lanche o Sr.Bispo, Dom ELISEU SIMÕES MENDES, explicou o motivo do convite e deixou-nos a todas aturdidas. Ele solicitara, em todo o municípoio, um levantamento sobre a mortalidade de parturientes e recém-nascidos e o resultado foi aterrador.
Não me lembro mais das proporções, mas era deveras preocupante e dom Eliseu nos disse que nos reunira ali para ver se conseguiríamos ajudar de alguma forma a minorar o problema, já que o governo não parecia que viesse a dar conta desse setor.
Sugeriu que fundássemos uma sociedade beneficente, pediu que refletíssemos sobre a gravidade do problema e a nossa responsabilidade e marcou uma nova reunião. Foi assim que surgiu a A.P.M.I. de Campo Mourão ( Associação de Proteção à Maternidade e à Infância de Campo Mourão), respaldada pelo bispado, e apoiada por todos os segmentos da sociedade.
Pusemos mãos à obra, todos se prontificaram a ajudar, os médicos se puseram à disposição e, formando equipes, andávamos pela cidade angariando sócios para a nova entidade, o que surpreendia muitos cidadãos, para quem explicávamos os objetivos da nova sociedade.
Foram afixados avisos em todas as igrejas e capelas do interior, postos de saúde, fórum, escolas, prefeitura...
Os padres explicavam após o Evangelho, tudo convocando as mulheres grávidas a virem fazer o pré-natal e trazerem seus bebês para serem examinados, vacinados e acompanhados pelos pediatras que, aliás, foram de grande ajuda para a nossa empreitada.
Conseguimos uma casa modesta e nos preparamos com palestras dadas pelos médicos e pediatras para iniciarmos a orientação às gestantes.
Paralelo a isso, funcionava por iniciativa do bispado e da prefeitura, um CLUBE DE MÃES, que, ao nosso lado, passava às mães noções de higiene, cuidados e alertas aos sintomas de doenças
Mas a coisa não andava...
Nós tínhamos tudo organizado e não conseguíamos convencer as gestantes a se submeterem a exames e tratamento. Nada surtia o efeito esperado, umas poucas atendiam o nosso apelo.
O povo do interior, arisco e desconfiado, não acreditava no nosso apelo e ainda vigorava fortemente o velho costume dos partos feitos pelas “comadres” e o costume atávico de não se expor a médicos- especialmente as mulheres.
Nós não sabíamos mais como fazer para conquistar a confiança dos caboclos, e eram eles especialmente o nosso objetivo, pois no interior do município é que se apresentava o pior do problema
Estávamos desanimadas...
Um dia meu marido, que era Inspetor de Terras, ia entregar uns documentos num sítio longe.Estava uma manhã bonita e ele me perguntou se eu não queria ir junto.Eu, que não conhecia a região, gostava de fazer esses passeios e lá me fui com meu gurizinho ao colo.
O “jipe” ia “corcoveando” pelos carreiros íngremes e paramos em vários lugares, onde meu marido descia e conversava com os homens. Chegamos à casa do tal senhor que ele procurava, onde a mulher nos indicou para que lado do sítio eles estavam trabalhando e lá fomos , em meio à plantação.
Uma coisa me havia chamado a atenção. Nos lugares onde passávamos havia sempre o som de um rádio tocando alto músicas da época— o radinho de pilha era a maior novidade e a febre do momento.
Quando afinal chegamos onde estavam trabalhando—eram muitos homes, mulheres e crianças—meu marido desceu do “jipe”, achou quem estava procurando e lá ficaram conversando.Eu observava tudo quieta mas atenta e, de repente, uma coisa me chamou a atenção: pendurado num galho de cafeeiro e tocando bem alto lá estava ele: o RADINHO DE PILHA.
Foi o sinal!Naquele instante me veio a idéia de que ESSE era o caminho para chegarmos até eles!
Na volta à cidade, em nossa primeira reunião, expus minha idéia mas, achando graça e com reservas, muitas senhoras consideraram difícil pormos em prática esse novo estratagema de divulgação.
Justamente uma das senhoras do nosso grupo, dona Elza Brisola Maciel, era a diretora da difusora de rádio local e se entusiasmou com a idéia, colocando a emissora a nossa disposição e eu me prontifiquei a fazer o programa. Isso para mim não era difícil já que tivera, em solteira, nos meus tempos de estudante, contato com o microfone da Rádio Ministério da Educação, no Rio, num programa semanal de música clássica.
Com certa vacilação a respeito do sucesso, a idéia terminou aprovada porque, afinal, não nos custava tentar e precisávamos fazer alguma coisa.
E assim surgiu o programa da A.P.M.I. na Rádio Colméia de Campo Mourão, comigo ao microfone. É claro que todos me ajudaram com sugestões e contei com a ajuda dos pediatras para me orientarem nos conselhos que daria e minha idéia era falar dum modo que, realmente, chegasse até eles.
O programa era semanal e saiu mais ou menos assim:
Eu me apresentava, dizia que era de uma entidade nova que fora fundada para proteger as mães e as crianças e, principalmente as gestantes e dizia que era para todas as mulheres. Que sabia das dificuldades que tinham por morarem tão longe da cidade e que estávamos, justamente com aquele programa, de MÃE PARA MÃE, tentando ajudá-las.
Eu passava algumas noções básicas sobre cuidados com tosse, diarréia, verminose, anemia, mostrava como identificar os sintomas e falava de legumes, hortaliças e frutas, como deviam ser tratadas e lavadas, tudo de maneira bem simples para que compreendessem bem, e , às vezes repetia, dizendo:” Eu sei, dona Maria, que a senhora não sabe escrever para anotar, mas tem cabeça boa! Preste atenção! Vou repetir bem devagar e vá guardando aí na memória!”
Passava receitas de aproveitamento de alimentos, sopas, bolachas, bolos, maneiras de armazenar alimentos e higiene em geral.
Depois falava com os homens e, com eles, era bem dura.
“E então, “seu” Zé! Cuidando da lavoura, hem? Está mesmo ficando uma beleza! Desta vez o senhor acertou no adubo e plantou na hora certa... Isso é muito bom, a colheita é garantida!... Mas encosta a enxada um pouco e vem aqui na sombra que eu quero lhe falar!...”
Aí eu “pagava pesado”...
“Pois é, “seu” Zé... a lavoura está indo bem. O tempo está ajudando...olha, pensa que eu não sei? O senhor está até pensando em comprar um tratorzinho, ou tratar mais gente para lhe ajudar no ano que vem, não é verdade? Tem lá os seus planos, não é isso? Isso é muito bom...muito bom...E lá na sua casa, hem? Também está planejando alguma coisa? Coitada da dona Rosa!...Já está “de barriga” de novo e puxando água do poço para lavar roupa, cozinhar e dar banho nas crianças.Aliás elas andam até “fedidinhas” por tomarem pouco banho...E sabe que elas não podem andar descalças, não é, “seu” Zé? Pegam lombriga, bicho de pé e outras coisas ruins que não quero nem falar”!...
“O senhor não me leve a mal... mas que tal separar um dinheirinho da colheita e puxar água para dentro de casa? O olho d’água não é longe!...E, pense bem! Que beleza vai ser para todo mundo! A dona Rosa então vai ficar muito feliz! Não precisa mais andar arrastando aquele balde pesado...”
Outro dia eu falava com o “seu” João... e ia mais ou menos do mesmo jeito:
-“Ô “seu” João!, “tá” bonita a lavoura este ano, não é?É... no ano passado o senhor sofreu...também a chuva atrapalhou e acabou plantando meio tarde, não foi? Ou foi muito cedo? Ou foi o adubo que não era bom? É...precisa ver tudo isso para não ter aborrecimento mais tarde...Falando nisso, já estou sabendo. Dona Tereza está “esperando” de novo...o senhor vai ligeiro, hem? Veja bem...O que o senhor faz quando a terrinha está meio fraca? Vem aqui na cidade buscar adubo, fertilizantes e outras coisas mais para fortalecer a terra, não é? E o senhor já pensou na dona Tereza? Um filho atrás do outro e trabalhando do jeito que ela trabalha, o senhor não acha que ela precisa de uns fortificantes também ? O senhor não vai querer que o moleque nasça “mirradinho”, vai? Pois é, “seu” João! Tem de tratar dela também!Tem de trazer a dona Tereza com as crianças até aqui, procurar a gente na A.P.M.I. , que dá assistência com médicos e remédios e exames às mães e às crianças, assim como a Casa Rural lhe ajuda aqui! Se a dona Tereza se tratar, vai ver só a saúde do “garotão” que vem vindo! E trazer os outros também para fazer exames, para ver se não precisam de remédio para as lombrigas.E o Pedrinho com essa tosse braba, hem? Traz eles até aqui para a gente ver isso!
Olhe, aproveite e vá também à Prefeitura que lá eles lhe dão toda a orientação para fazer a “casinha” no lugar certo. O senhor sabe que precisa ter uma ”casinha” bem localizada, não? Senão corre perigo de estragar a água e daí, Deus me livre! Aí vem um montão de problemas! Mas o que não pode mais é ficar sem “casinha”... o senhor me entende, não é, “seu” João? Venha até aqui falar conosco que nós o orientamos!... Tem muita coisa boa que dá para vocês aproveitarem e, VEJA BEM, sem despesa, viu? É só vir e trazer a família...”
Outro dia eu falava com o “seu” Antonio, depois com o “seu” Pedro, com o “seu” Francisco, e as conversas eram por aí, mais ou menos as mesmas.
Certo dia estava eu em casa quando a empregada veio me dizer que tinha um senhor a minha procura.Perguntei a ela se não era meu marido que ele procurava já que a Inspetoria de Terras era junto, no mesmo lote. Ela disse que não, que era comigo que ele queria falar.
Cheguei à porta e lá estava um caboclo bem vestido, de botas lustrosas e chapelão ajeitado, tendo a mulher grávida e as crianças ao lado, bem arrumados, muito tímidos e de cabeça baixa.
Fui até eles e perguntei se era a mim mesmo que procuravam. O homem, muito altivo e respeitoso, me perguntou:
-“A senhora é que é a dona Walkyria ?”
-“Sim, senhor” respondi.
-“Pois é com a senhora mesmo que eu vim falar!... A senhora FALOU COMIGO OUTRO DIA PELA RÁDIO. Eu assuntei... assuntei... e achei que era bom mesmo trazer a “famia” para fazer os “tar” de exame...”
Eu fiquei tão emocionada que me vieram lágrimas aos olhos!
Meu Deus! Eu estava conseguindo!
Mandei-os sentar, servi-lhes um refresco e tratei de encaminhá-los, depois de conversarmos um pouco. Vinham de longe, do “fundão” do município.
Eu mesma fui levá-los e queria que se sentissem à vontade. Durante a consulta da mulher com o ginecologista fiquei ao lado dela que, envergonhada, relutava em responder as perguntas do médico e eu tentava quebrar sua timidez e insegurança.
As coisas começaram a mudar. A afluência de gestantes e crianças foi aumentando, fomos ganhando a confiança deles mais depressa e, não muito depois, com verbas do governo, auxilio forte do bispado, da prefeitura e do povo— promovíamos lanches, desfiles de modas, barraquinhas de pastéis nas feiras e feijoadas— conseguimos construir uma nova e ampla sede que, além do Clube de Mães, cozinha para aulas, consultórios para os médicos e sala de espera, tinha até um consultório dentário, atendido pela nossa companheira, Dra. Kátia Braga.
Acho que vem daí a causa desta reunião festiva que tanto me gratifica...
Foi por causa do meu jeito de falar ao microfone que consegui atrair uma faixa carente da população do município que, orgulhosa, analfabeta e arisca, resistia às “modernidades” da cidade.
Devo ao Sr. JOÃO, que atendeu e entendeu o meu apelo, que confiou no que eu dizia. Por influência dele, talvez, muitos outros Srs. João, e Antonio, e Pedro, e Manuel e Francisco vieram em seguida, quebrando um “tabu” de resistência que tanto os prejudicava.
Foi o começo. Eu apenas estava aqui no momento certo...
Obrigada minha cidade querida!
AS lembranças dos anos que vivi aqui sempre me são muito gratas e sempre me considerei mourãoense de coração. Passei aqui os anos mais fortes e produtivos de minha vida... e lhes sou muito grata por eles.
Obrigada minha cidade!
Walkyria Gaertner Boz
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