quinta-feira, junho 29, 2006

História de estrada


Chovia muito fazia dias... As estradas estavam intransitáveis e meu marido olhava pela vidraça, preocupado. Precisava estar em Curitiba para uma reunião importante, queria nos levar com ele, mas vacilava em decidir a saída. O Junior acabara de fazer três anos, Cristina não tinha um ano e eu estava de sete meses, esperando a Cláudia. A viagem era longa, a estrada até Maringá não tinha asfalto, eu também queria ir junto por que não gostava de ficar sozinha, e a demora dele era sempre de muitos dias. A chuva não parava... e as estradas estavam muito ruins.Finalmente, à tardinha, parou de chover e um sol muito preguiçoso clareou o horizonte, prometendo um dia seguinte sem chuva e Geraldo se decidiu: “Vamos pegar a estrada amanhã bem cedo!”

Eu me apressei a terminar de arrumar as malas. Alegrava-me a idéia de sair um pouco e, na vinda para Curitiba passávamos sempre por Ponta Grossa, onde eu tinha tios e primos, e estar um pouco com a minha gente era muito reconfortante.

Estávamos em Campo Mourão há dois anos e sentía-me isolada do mundo. Vivia num casarão feio e pintado de verde folha por dentro, o que o deixava com um aspecto triste, com um enorme telhado saindo da porta da cozinha e dando acesso a mais quatro quartos – que serviam de depósito – e dando também cobertura para a garagem e ao grande pátio onde ficava o tanque de lavar roupa e um velho e enorme forno de tijolos, que para mim nunca teria utilidade, pois não sabia lidar com ele e não tinha intenção de fazer pão em casa.

Saímos as quatro da manhã, pois meu marido previa problemas na estrada. Acomodamos as duas crianças dormindo no banco de trás e partimos, eu rezando para que fizéssemos uma viagem tranqüila, pois já estava bem pesadona e Cristina, que ainda não andava, passava, quando acordada, agarrada comigo e passando por cima de mim. Junior já ficava atento à estrada, atrás do pai, meio como que dirigindo junto.

Tínhamos uma Simca Chambord há pouco tempo, um carro completamente inadequado para aquela região de muita lama no tempo de chuva e muito pó no tempo de sol, mas era um sonho que realizáramos. Tivéramos primeiro um “jeep”, (que eu achava lindo), de capota de aço, e que enfrentava qualquer tempo, mas creio que meu marido tinha dó de me ver sempre grávida e sacolejando na dureza dos assentos do “jeep” e passou primeiro para uma valente Rural Willis e, mais tarde, apareceu com a Simca, linda, bege e cinza, com um estofamento macio e que parecia nos pedir, quando na garagem, que saíssemos estrada afora.

Estava muito escuro ainda quando saímos e fomos muito bem por mais de uma hora.A Simca se comportava com galhardia, mesmo dando umas escorregadas.

Creio que estávamos talvez a menos de uma hora de Maringá (onde o asfalto – ainda em construção – nos esperava) quando, no lusco-fusco matinal encontramos a fila de caminhões parados. Dali para frente nada passava, o barro transformara o leito da estrada num mingau mole e escorregadio, onde os caminhões não se aventuravam a atravessar com suas cargas pesadas.

Tive vontade de chorar. Logo outro caminhão encostou atrás de nós, o que significava que estávamos sem saída, e teríamos que aguardar ali até podermos sair.Em seguida mais um e mais outro...

Não era a primeira vez que isso nos acontecia e eu já era exímia viajante de estradas ruins. Andava sempre prevenida. Aos meus pés estava uma sacola com água filtrada para bebermos, outra garrafa com água para lavar as mãos das crianças antes de lhes dar algo para comer, uma toalha pequena para limpá-los, uma outra toalha para enxugá-los, e mais bananas, maçãs, bolachas, chocolates e pirulitos para distrair as crianças. Eles ainda dormiam. Eu nada falava porque sabia que Geraldo estava nervoso e fumava sem parar.Estava aflita. Quanto tempo ficaríamos ali? No despertar da manhã ouvia-se já, aqui e ali, o canto de um pássaro, depois outro...Eu já começava a me arrepender por ter vindo, expondo as crianças aquele desconforto e sabendo que trazia a meu marido muita preocupação devido ao meu estado, e já sentia vontade de ir ao banheiro...

Olhei para fora.Estávamos afundados na lama, não sei se daria para abrir a porta do carro, e mesmo se desse, iria me enlamear inteira até alcançar uma moita onde pudesse me esconder—isso também já aprendera a fazer nas minhas muitas idas e vindas pelas estradas—e via que, dum jeito ou de outro, teria que tentar, o mais discretamente possível.

O dia começava a clarear e se via do lado de fora do carro o movimento dos caminhoneiros, aborrecidos e impotentes, que talvez já estivessem ali desde a tarde anterior, cansados e esfaimados, aguardando a melhora do tempo.

Tentei dormir um pouco. Nada havia a fazer a não ser esperar, e meio adormeci, ouvindo o som da conversa e das risadas dos homens que tentavam fazer o tempo passar, conversando e fumando.

O dia amanheceu finalmente e um sol lavado e claro surgiu vitorioso. Eu estava cansada de estar sentada. Doíam-me as costas e as crianças acordaram irrequietas,

Dei leite com Nescau para o Jr e a mamadeira para a Cris – eu levava também uma garrafa térmica com café e outra com leite – e fizemos o nosso café da manhã o melhor que pudemos. As crianças não se aquietavam, o Jr queria sair para fazer xixi e não era possível, estávamos completamente atolados.

O dia avançava e o desconforto aumentava. Eu também já não agüentava mais de vontade de ir ao banheiro, mas procurava sossegar por que não havia como, mas estava muito difícil.

Os caminhoneiros passavam olhando para nós e eu sentia receio. Eles estavam sujos e barbudos, lembravam grosseiros malfeitores, não sofridos trabalhadores.

Passaram para cá, depois para lá, iam e vinham. De repente notei que o bando aumentou em nossa roda e meu coração disparou. Achei que iam nos assaltar e me abracei às crianças.Eles falavam entre si e nos olhavam.Meu medo aumentava.As crianças não se aquietavam e eu tentava faze-los se calar, preocupada em não irritar mais meu marido.

De repente um deles se apoiou na capota do carro e, pondo a cabeça a meio para dentro da janela, do lado do motorista disse;

“Òi,doto, nóis tamo pensando em tirá ôces daí.Nóis tamo entalado memo e a coisa aqui vai demora.Não dá pra vê sua patroa e as criança nessa situação”

Geraldo, nervoso, perguntou como fariam isso e acho que não podia mesmo imaginar como seria.

O homem respondeu num sorriso barbudo:

“Se o senhô deixá, nóis sabe como fazê!”

Lógico que Geraldo consentiu. Qualquer coisa era melhor que aquela inanição, e disse para o homem que estávamos por conta deles.

A partir daí, assisti a um dos momentos mais espantosos de minha vida.

Uns vinte homens, aqueles sujos, barbudos e mal-encarados envolveram o carro e, ao comando de um deles, ergueram – LITERALMENTE – ergueram a Simca conosco e nossa bagagem dentro (eu me mexia, observando-os, apavorada vendo o carro subir) e, atendendo às ordens de um deles, iam tirando erguido o carro do atoleiro. Era indescritível o que eu via e meus olhos eram pequenos para registrar aquela imagem maravilhosa!

Eu estava apavorada sentindo-me erguida daquela maneira.E se eles não agüentassem o peso e o carro despencasse? Nós, as malas e o carro éramos muita coisa para eles!

O carro balançava para cá e para lá, eu estava assustadíssima e nem a voz me saía para pedir que parassem.Se eu tomasse aquele tombo poderia entrar em trabalho de parto ali mesmo, e, se tudo já estava difícil, como ficaria então? Mas a voz não me saía. Eu continuava com os olhos arregalados, entre maravilhada e petrificada de terror, vendo as coisas acontecendo ao meu lado, agarrada às crianças. Junior acompanhava tudo quietinho, mas Cristina choramingava, assustada com o movimento à nossa volta.

Eles iam gritando “Eia, eia!“ e iam levando o carro para a outra pista da estrada, que estava livre. Assentaram o carro na trilha oposta e, enquanto um ajudava, sinalizando por onde o Geraldo devia levar o carro, uns cinco deles escoravam o carro com as mãos, apoiando os pés no barranco para não cairmos na valeta, enquanto outro tanto empurrava atrás, já que a Simca teimava em não ficar na trilha, roncando e seguindo atravessada, mas ia indo!!!

Os homens continuavam gritando e, animados com o sucesso riam e troçavam um com outro

- “Vamo, seus frouxo! Cadê esses muque? Empurra cambada!!!”

Os outros motoristas, que sobraram na empreitada, riam e batiam palmas, incitando os colegas a continuarem o trabalho. Meu coração parecia que ia saltar pela boca! Eu não acreditava no que estava vendo!

Geraldo suava, tentando dominar o volante e acompanhar o comando do caminhoneiro, e o carro ia indo !!!O carro ia indo, passando pelos outros caminhões parados na outra pista.O carro ia indo!...

Não sei quanto tempo durou a façanha, mas, de repente, fomos erguidos mais alto novamente e estávamos no lado certo da estrada e no seco, vendo a estrada limpa a nossa frente!´

Céus!!! Eles conseguiram!!! Como fora possível isso? Alguém acreditaria se eu contasse?

Olhei para trás. Os homens sujos, barbudos e mal-encarados estavam ali, atrás do carro, rindo, se abraçando, dando “hurras” de contentamento, muito mais sujos que antes, pois mal se lhes enxergava os olhos, completamente embarrados e cansados pelo enorme esforço, mas vencedores! Haviam conseguido...

Meu marido desceu do carro e abraçou cada um deles, agradecendo-lhes a solidariedade e a atitude generosa, e voltou para o carro suado e sujo de barro, mas feliz, podíamos seguir viagem!

Eu chorava de alívio e de gratidão, envergonhada de ter tido medo deles em algum momento, sem saber o que dizer de emoção e alívio.

E na estrada, tão lamacentos quanto ela, ficaram aqueles homens, rindo e acenando para nós, que também lhes acenávamos, enquanto o carro sumia na estrada ensolarada.............,

Isto aconteceu em 1963.....

Curitiba, 25 de abril de 2004

Dedico esta página, com todo o meu respeito, aos CAMINHONEIROS DO BRASIL que, no PARANÀ, entre março e abril de 2004, se sujeitaram a permanecer enfileirados por mais de 90 quilômetros para descarregar no porto de PARANAGUÁ.

1982 - Tempo de Copa - 2006


Sempre gostei muito de futebol. Apesar de ser menina e não ser uma atividade muito afeita às mulheres, ainda sou de um tempo em que a meninada brincava nas ruas e calçadas e os brinquedos eram poucos. A bola, então, era um dos principais divertimentos e, muitas vezes ficávamos tempo a observar as “peladas” da gurizada em meio a maior algazarra e, não raro, éramos chamadas para atuar na trave, como goleiras — às vezes faltava um menino e nós, meninas, só prestávamos para ficar no gol, nada mais.

Não havia ainda televisão e o rádio dominava soberano as tardes de domingo e o carioca já era, como até agora, inteiramente fanatizado pelos seus times, e, ao se passar pelas ruas, só se ouvia a narração vibrante dos locutores, em vários campos de futebol, irradiando os vários jogos da tarde.

Era o futebol para mim, portanto, algo que fazia parte da minha vivência e cultura, mesmo não tendo na família ninguém que jogasse ou fizesse parte de algum time.

Minha vinda para o sul me fez a vida mais pacata e tranqüila, meus interesses se voltaram para a minha família e meu trabalho, mas, com o advento da televisão, gostava de assistir às partidas mais acirradas dos campeonatos. E sempre vibrava muito, o que surpreendia meus filhos, mas me sentia feliz.

Foi assim que, com o passar dos anos, e por infaustos acontecimentos, me encontrava em Los Angeles em junho de 1982. Eu lá estava desde março, atendendo minha mãe doente e, como ela tivesse uma leve recuperação, resolvera voltar para casa.

Eu nada entendia de inglês e acompanhava muito mal os noticiários, sujeitando-me às notícias que minha irmã ou meus sobrinhos me passavam. Eu sabia que estava acontecendo a COPA na Espanha e meus sobrinhos, para me agradar, tentavam me passar as noticias sobre o evento, mas eu não me sentia satisfeita. Como era possível ali ninguém se interessar por futebol e não se ver a transmissão de nenhum jogo? Eu estava realmente num outro mundo... E louca por voltar!!!!!!

Minha irmã e meus sobrinhos me levaram muito cedo ao aeroporto, era o dia 17 de junho e Paulo César me disse que soubera que o Brasil ia jogar com a Rússia naquele dia, mas não sabia bem a hora. Fizemos cálculos e presumimos que a partida estaria acontecendo enquanto estivéssemos no aeroporto e, ao lá chegar, mesmo admirando o fantástico mundo que se apresentava ao meu redor, de gente de todos os lugares do mundo, chegando, circulando e saindo, nos trajes mais extravagantes, uma multidão apressada e se expressando nas mais diferentes línguas e gestos, o que já por si só seria um espetáculo inusitado, mesmo nesse torvelinho, eu olhava para cima, tentando ver uma televisão que dissesse alguma coisa ou mostrasse o que estava acontecendo.

Meus sobrinhos riam da minha aflição. COMO ERA POSSÍVEL ALI NINGUÉM SE INTERESSAR POR FUTEBOL E NÃO SE VER A TRANSMISSÁO DE NENHUM JOGO???

Depois de todos os procedimentos rotineiros executados e alguma espera, que até passou depressa graças à presença de minha irmã e sobrinhos, despedimo-nos e embarquei num enorme avião da VARIG que já vinha de TÓQUIO a acabara de lotar ali.

Sentia-me assustada e sozinha, mas acomodei-me onde indicaram, no meio do avião, na fileira de cinco poltronas, ao lado de outras pessoas silenciosas.

O avião decolou e em seguida várias comissárias de bordo circularam com presteza, servindo bebidas e uma pequena refeição aos passageiros, com a desenvoltura e graça que sempre deram o tom das viagens pela VARIG.

Um pouco mais tarde, terminado o serviço e todos acomodados, diminuíram as luzes e uma penumbra confortável convidava os passageiros a um cochilo. Eu também me propus a relaxar e fechei os olhos, deixando-me envolver pelo barulho monótono dos motores. Não sei quantos minutos se passaram, mas não foram muitos.

De repente o alto-falante de bordo deu um sinal sonoro e repetido que me chamou a atenção e, meio com preguiça, escutei: ai graças! era em português!

“Aqui fala o comandante Barbosa. Terminou o jogo Brasil e Rússia. O Brasil venceu por...”

O que aconteceu então foi algo completamente inusitado. Eu nem me lembro de ter ouvido o placar e até hoje não sei por quanto o Brasil venceu, só sei que, num impulso irrefreável e como movida por uma mola pulei da minha poltrona, de braços erguidos e gritando: IAUUUUU!!! IAUUUUU!!!!!

Foi terrível... imediatamente me dei conta do que fizera e me joguei na poltrona, morta de vergonha, querendo desaparecer.

Eu quebrara o silêncio reinante na aeronave e percebi um começo de pânico no ambiente, vozes alteradas e assustadas, certamente querendo saber o que estava acontecendo. Eu estava aterrada com o que fizera.

Nisso, o passageiro ao meu lado, certamente um nissei — o avião estava cheio de orientais — levantou-se em meu socorro e, de pé, acalmou os viajantes, falando em inglês que não se preocupassem, que nada havia acontecido de assustador, que estava tudo bem e que a “lady”, ao lado dele, era brasileira e estava apenas comemorando a vitória do Brasil contra a Rússia no jogo que acabara de terminar.

Foi uma risada geral e em seguida todos começaram a bater palmas, o que me obrigou a me levantar e agradecer. Imaginem eu, chorando, de mãos postas, agradecendo para todos os lados do avião e murmurando um deslavado “Excuse me, please!”

As palmas e risadas continuaram por mais alguns segundos, até as aeromoças riam e, em seguida sentei-me, agradeci ao meu gentil vizinho que me salvara e evitara uma situação sabe Deus de que tamanha conseqüência, e tentei me acomodar de novo.

Não pude, entretanto, deixar de me rir às escondidas depois que tudo se aquietou e a penumbra voltou a reinar. Ora essa! O que eu aprontara!

O meu atencioso vizinho me apresentara como uma “lady” e eu ri... Com certeza, com certeza mesmo não seria assim que uma “lady” se comportaria...

Mas decerto sim, seria assim que uma brasileira “vibradora” se comportaria... Que me perdoem os meus companheiros de viagem, daquele longínquo ano de 1982...