domingo, maio 09, 2010

Mundo Cão

     
     Ele está ali quase todos os dias, sob sol quente ou friagem, na mesma esquina movimentada de Curitiba, pedindo esmolas Há muitos anos é o meu caminho de casa e nos tornamos familiares.

     Não é uma criança, é um homem jovem, aparentando por volta dos trinta anos, esquálido e sujo, deficiente físico. O que mais me incomodava era justamente aquela perna. Ele a traz enrolada em trapos e a coloca num pedaço de cano de PVC para poder andar e vai,  trôpego, abordando os motoristas que suponho, como eu, já o conhecem há tempos e diàriamente contribuem com suas moedas.
     Sou voluntária no Hospital Erasto Gaertner e, por esses caminhos do destino, temos lá o IBEG (Instituto de Bio engenharia Erasto Gaertner) que produz uma série de aparelhos e próteses, já sendo referência nacional,  concorrendo em igualdade com similares internacionais e, tempos atrás, tivemos numa de nossas palestras rotineiras de treinamento, uma técnica nos demonstrando em power point todos os produtos em disponibilidade e lá eu vi o que poderia ser a redenção do Daniel de Oliveira.

     Nem é preciso dizer que eu já lhe fiz várias perguntas e havia sim a possibilidade de conseguirmos, sem ônus para ele, uma prótese. Procurei todas as respostas sobre internamento, tempo de tratamento e remédios através do SUS e todas as informações foram alentadoras.

     Voltei para casa animada com a idéia e, na mesma esquina de sempre e sempre sorridente, lá estava ele cumprindo sua jornada de esmoleiro.

     Estacionei no meio fio perto e lhe fiz sinal para se aproximar. Lá veio ele, manquitolando, com aquele cano horrível até o joelho.

     Falei a ele de tudo, das possibilidades maravilhosas dele se livrar daquele horror, disse-lhe que tudo lhe seria doado, sem lhe custar nada e que beleza seria depois.

     Ele me ouvia sorridente e em silêncio, eu achando que passava para ele uma coisa ótima e,  não sei como , não o via participar do meu entusiasmo.

          -Então, Daniel ? O que acha disso?
          - Não sei, dona...preciso pensar...eu tenho família...preciso pensar...

     Ah, então o problema era esse...e eu nem tinha m,e lembrado disso! Que tremenda falha minha!

     Pensei ligeiro... mas isso eu certamente resolveria com o voluntariado! Tinha certeza que minhas amigas participariam desse programa   regenerador com  o mesmo entusiasmo meu!

     Falei-lhe disso, dizendo-lhe que, enquanto em tratamento nós daríamos um jeito de ajudá-los a passar, que eu tinha muitas amigas e etc...

     Ó Deus, ele continuava impassível, sorrindo.Ao fim,  disse:

          -Ó, dona , eu vou pensar...eu vou pensar...

     E saiu, claudicando, cuidar dos outros “fregueses” que paravam no sinaleiro.

     Que frustração.. .dei partida ao carro e me alinhei , esperando o sinal abrir. Ele ainda me deu com a mão e segui meu caminho. Eu falhara.. não fora convincente o necessário para entusiasmá-lo...

     Será que o pressionara muito? Será que ele se assustou com a idéia? Afinal, afora o nosso velho contato superficial de nos vermos naquela esquina, ele nada sabia de mim e nem eu dele... Realmente ele estava certo... precisava pensar muito...

     Deixei o tempo correr e, sempre que ali passava comparecia com minhas moedas e ele sempre me cumprimentava sorridente, agora com um sorriso mais amigável, mas só isso.

     A idéia ainda não amadurecera, decerto...

     O tempo passou e chegou um dia em que eu voltava mais cedo para casa e tinha algum tempo livre. Na mesma esquina lá estava ele e sua rotina. É hoje! disse para mim mesma. Chega de espera! Com certeza ele está constrangido em vir me falar,  pois tudo isso lhe deve ser muito doloroso.

     Encostei o carro e lá veio ele ao meu encontro.
Agora ele tinha arrumado uma bicicleta velha onde apoiava a perna doente e a vinha manobrando até seus “contribuintes”.

     Fiquei a imaginar a dor que ele devia sentir para arrumar aquela “catraia”   para poder se locomover.  Desumano...Insuportável.

          -Então, Daniel? Já pensou? Já se passou bastante tempo...

     Ele parou ao lado do meu carro e ali já não sorria. Ví tristeza em seus olhos.

          -Então meu amigo? Vamos jogar fora essa sucata?

          -Não posso, dona...não posso...

          -Que é isso, Daniel? Está com medo? Já lhe disse...

     Ele fez sinal com a mão para que eu parasse.

          -Não, dona! Não é medo! Eu sou muito grato... mas não posso...

          -Mas por que? Você não vê quanta coisa boa vai lhe acontecer depois disso?

          -Vejo, dona...vejo...mas vai acontecer muita coisa ruim também...

     Olhei para ele surpresa. Como?

          -Olha, dona, eu tenho família...

          -Eu sei, você já me disse! Mas eu também lhe disse...

     Novamente ele me fez sinal para parar.

          -Eu sei, dona, tudo que a senhora vai me dizer.Tudo que ficou martelando na minha cabeça todo esse tempo, mas eu não posso mesmo...Eu não tenho leitura...não sei fazer nada , só isso.Desde pequeno fui ensinado a fazer o que faço e nada mais...mas tenho família. Se eu ficar são, como vou arrumar dinheiro? Quem vai me dar trabalho se não sei fazer nada, nem ler? Não vou ter cara de pedir esmola! Vou perder o “ponto”!

     Eu mal o via, tinha os olhos embaçados por lágrimas que teimavam em cair. Ele também piscava muito...

          -Deus que abençoe a senhora, dona, mas não tem  jeito...tudo bem...paciência...e a senhora vá com Deus!

     Virou a bicicleta e foi se afastando, decerto para eu não ver sua emoção.

     Esperei mais uns instante para me recompor e saí, mas naquele instante acho que não estava com Deus, como ele me desejara...

     Estava revoltada com o mundo, com toda a impotência que me amarrava e me tornava tão inútil quanto ele por não estar em minha alçada dar fim a tamanho sofrimento...

Walkyria Gaertner Boz
Curitiba, 09 de maio de 2010

2 comentários:

Unknown disse...

Mundo cão mesmo...Pais miserável...onde o indigente é visto com olhos de turista...nossa cidade está se tornando campeã em moradores de rua...e a assistência social do município...cadê???

Unknown disse...

Mundo cão mesmo...Pais miserável...onde o indigente é visto com olhos de turista...nossa cidade está se tornando campeã em moradores de rua...e a assistência social do município...cadê???